o que os outros disseram por mim #2

"A narrativa minuciosa e excessiva (quer em literatura quer em cinema, as duas artes mais dadas à transmissão do espanto) é não só fácil, como frequentemente entediante. O horror não tem necessariamente algo de implícito (isso é mais o que se passa com o inquietante), mas sim breve, como uma chicotada ou um toque em esgrima. […] Aquilo que é entrevisto provoca mais pânico do que o é generosamente mostrado […]
A frase que maior horror me causou em literatura não está em Lovercraft, mas em Flaubert: no final de Madame Bovary, com ela já morta e no caixão, enquanto várias personagens lhe cingem uma coroa, Flaubert diz: «Foi necessário erguer-lhe um pouco a cabeça, e então uma onda de líquidos negros saiu, como um vómito, da sua boca.» O autor não insiste nem se compra, mas é significativo que Faulkner dissesse no seu Santuário: «Cheira a negro, pensou Benbow; cheira àquela substância negra que saiu da boca de Madame Bovary e caiu sobre o véu nupcial.» Duvido que alguém, mesmo o próprio Faulkner, conseguisse com uma frase menos sóbrio a façanha de fazer sentir um tão hediondo cheiro."

Javier Marías em "Contra a Truculência" do livro Literatura e Fantasma

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