Dinis Machado - Qual o lado mais cómico disto?


Este continua a ser um dos meus textos favoritos. É uma lição de vida em quatro parágrafos. E há quem não compreenda que eu faça esta pergunta constantemente. E também a pergunta inversa: "Qual o lado mais dramático disto?"
É útil. Permite o afastamento que de outra forma não conseguiria.

"Qual o lado mais cómico disto?

Uma das primeiras grandes revelações da minha infância, ao surpreender as coisas, foi verificar que me interrogava, invariavelmente, assim: qual é o lado mais cómico disto? Os desfiles militares, as cerimónias religiosas, os cumprimentos obsequiosos e constrangedores, os adereços excessivos da autoridade, as exigências rígidas da hierarquia, os compromissos artificiosos. E eu: qual é o lado mais cómico disto? Daí a fazer esta pergunta interior em qualquer situação dramática, foi um passo. A doença, a brutalidade, a estupidez, a intolerância, a maldade pura, a alucinação despótica – até o leito de sofrimento, o leito da morte. E eu: qual é o lado mais cómico disto?

Andava nessa altura a rir-me muito com as caras burlescas do cinema, não sabia que Shakespeare e Bergman existiam, ainda não tinha lido alguns livros trágicos e patéticos – e se soubesse que devia ter a faculdade de me rir de mim próprio, sabia-o sem o saber. Quando uma vez caí, a patinar no passeio com botas cardadas, e parti o dente da frente, fiz a pergunta calada e sacramental, enquanto as pessoas olhavam para mim:
- Qual é o lado mais cómico disto?

Quando a infância começou a ser perturbada por desentendimentos mais amplos com o real, insisti na defesa da minha alegria, do meu prazer de viver. E até na dor que retirava dos que amava (dos meus avós, das minhas velhas tias, por exemplo), e até na morte, que sempre me surpreendia, protegia-me com essa frase defensiva, essa armadura de sol, de chuva e de subir a escada a quatro e quatro.

Creio que os cómicos do cinema me compreendiam melhor que ninguém. Habitavam o coração do desastre com a desenvoltura e a paciência evangélica dos grandes missionários da naturalidade."

Dinis Machado em Reduto Quase Final

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