"eu disse «me lave a cabeça, eu tenho pressa disso», e então, me tirando do foco da ducha, suas mãos logo penetraram pelos meus cabelos, friccionando com firmeza os dedos, riscando meu couro com as unhas, me raspando a nuca dum jeito que me deixava maluco na medula, mas eu não dizia nada e só ficava sentindo a espuma crescendo fofa lá no alto até que desabasse com espalhafato pela cara, me alfinetando os olhos na descida, me fazendo esfregá-los doidamente com o nó dos dedos, ainda que eu soubesse que eles, ardendo, anunciavam francamente o meu asseio, e não demorou ela me puxou de nova sob a ducha, e seus dedos começaram a tramar a coisa mais gostosa do mundo nos meus cabelos co'a chuva quente que caía em cima, e era então um plaft plaft de espuma grossa e atropelada, se espatifando na cerâmica co'a água que corria ruidosa para o ralo, e ela ria e ria, e eu ali, todo quieto e largado aos seus cuidados, eu sequer mexia um dedo pra que ela cumprisse sozinha esse trabalho, e eu já estava bem enxaguado quando ela, resvalando dos limites da tarefa, deslizou a boca molhada pela minha pele d'água, mas eu, tomando-lhe os freios, fiz de conta que nada perturbava o ritual»
Raduan Nassar em Um Copo de Cólera