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Um breve comentário sobre a beleza de Luiz Pacheco


Quanto mais leio Luiz Pacheco, mais compreendo que ele, no meio de muita palha que escreveu, é, talvez, o escritor português do século vinte que melhor consegue a beleza. Especialmente porque a beleza das imagens criadas pelo Pacheco reluzem no meio da tristeza e dureza da vida (da sua vida). Não é apenas a da literatura (que nada tenho contra), a beleza que nasce do génio literário de quem a escreve. Esta é uma outra beleza, de outra ordem, de outra natureza, como se lê neste excerto de Uma Admirável Droga:
Ao nosso Z.Q. tinha morrido a mãe em Bucelas, na que é agora a Casa do Povo da vila.
(…)
Pela manhã cedo, Q. veio a Lisboa trazer algum dinheiro, pois tinha deixado a filha pequenita e a Emília se nenhum. Voltou, caiu em cima da cama, a criança ainda dormia no berço ao lado. Disse-lhe: “Morreu” (a minha Mãe). Guerreiro derrotado, amarfanhado mais que cansado.
A Emília, nos seus 15 anos, não sabia que lhe dizer. Não tinha leituras, nunca vira no teatro ou cinema da sua aldeia lances melodramáticos para aquelas situações que pudesse ali refigurar. Olhava-o compungida. Flor da terra, só o seu amor por ele, o desgosto de o ver assim, a podiam impulsionar, sabia que ele gostava (já tentara sem conseguir) que ela beijasse e chupasse a pilinha. Lembrou-se de súbito. Sem palavras, o Q. de olhos fechados, levantou a roupa da cama, desapertou o cinto, puxou as calças para baixo, curvou-se, beijou o caralho encolhido, e mais e mais. Ela a olhar espantada. E devagarinho, chupou, lambeu, beijou, na maior piedade, sem sensualidade carnal, só boca calada a transmitir a tristeza, consolo, um companheirismo, coragem para enfrentar a Morte. A Emília não saberia dizer tanto. Fazia. O Z.Q. ficou com uma grande admiração, consideração, paixão casta por ela. Esteve um bocado naquilo, até que, sem desejo a agarrou e já percebendo tudo, identificando o gesto, a puxou para cima, para o seu lado e choraram ambos, as caras encostadas um ao outro. Vencidos mas amantes. Bichos tão puros e tão frágeis. Tão calhados um para o outro. 

Um conto de Rubem Fonseca

Vida

No meu caso sou alertado pelo ruído causado pelo movimento de gazes nos intestinos. Mas há pessoas que não são beneficiadas por esse sinal prodrômico – minha mulher diz que isso não é uma doença, e não sendo uma doença não tem um pródomo, como o aviso que um epilético recebe momentos antes de ter sua crise, como ocorria com o nosso filho, que Deus o tenha, mas minha mulher dedica-se a me contrariar em tudo o que digo, a me hostilizar constantemente, esse é o passatempo da vida dela –, mas eu dizia que a minha flatulência é anunciada por esses ruídos dos gases se deslocando no abdome, e isso me permite, quase sempre, uma retirada estratégica para ir expelir os gases longe dos ouvidos e narizes dos outros. Aliás, prefiro fazer isso isolado, pois os flatos ao serem expulsos dão-me um grande prazer que se manifesta no meu rosto, seu disso pois na maioria das vezes eu os libero no banheiro, o melhor lugar para fazê-lo, e posso notar na minha face, refletida no espelho, a leniência do alívio, a deleitação provocada por sua essência odorífera, e também uma certa euforia, quando são bem ruidosos. E, sendo um ambiente fechado, tenho outra emoção, talvez mais prazerosa, que é a de fruir com exclusividade esse odor peculiar. Sim, eu sei que para a maioria das pessoas – certamente não para quem o expeliu – o aroma da flatulência alheia é ofensivo e repugnante. Minha mulher, por exemplo, quando estamos deitados na cama e ela ouve o barulho dos meus intestinos, grita comigo, sai da cama e vai peidar longe de mim, seu nojento. Saio correndo da cama e vou para o banheiro, nessas ocasiões, como já disse, prefiro ficar sozinho, e após expelir os gases no banheiro, como a porta fechada, quando nem acabei de gozar a satisfação que aquilo me propicia, ela grita do quarto, meu Deus, estou sentido o fedor daqui, você está podre mesmo. O cheiro não é tão forte assim, eu até que gostaria que fosse mais intenso pois me daria maior prazer, mas às vezes é tão suave que tenho que me curvar e fungar com o nariz quase colado no púbis para sentir o aroma desprendido pelo flato, mas mesmo assim, nesses dias ela grita palavras injuriosas do quarto, como se o odor tão fraco pudesse fazer o percurso tão longo sem esvaecer pelo caminho. Outro dia, no jantar, aliás isso ocorre quase todos os dias, ao repetir o prato de feijão, ela disse, come mais, enche as tripas, para depois peidar mais forte, mas ela diz a mesma coisa se repito a sobremesa, sou magro e não consigo deixar de ser magro, não importa o que eu coma, ela é gorada e não consegue deixar de ser gorda, mas vive fazendo tortas, pudins de leite e musses de chocolate, e se repito o pudim ou a musse ela diz, você vai passar a noite peidando como um cavalo, e ainda por cima ela me culpa de ser gorda, que a faço infeliz e ela come para compensar as frustrações causadas por mim, e ela tem razão, pois não consigo cumprir as minhas obrigações de marido, por mais que tente, e na verdade já nem tento mais. Eu poderia sair de casa, pedir o divórcio, mas lembro o que ela sofreu durante a doença de nosso filho, acho que nunca existiu no mundo mãe mais dedicada, e ela ficou gorda depois que nosso filho morreu, e às vezes eu a surpreendo chorando com o retrato dele na mão, e eu não devo abandona-la nessa situação, não posso ser tão desalmado e egoísta, e ainda mais sendo magro e elegante poderia arrumar outra mulher, mas ela não conseguiria arranjar outro homem e a solidão aumentaria ainda mais e seu sofrimento e ela é uma boa mulher, não merece isso. Estamos deitados, ela de costas para mim, pensei que estivesse dormindo, meus intestinos começaram a produzir borborigmos e ela, sem se virar, gritou ai meu Deus que vida a minha, vai peidar no banheiro, e eu fui e fiz o que ela mandou e contemplei no espelho a felicidade que o forte ruído e o intenso odor estampavam no meu rosto.

"Vida", Rubem Fonseca, Secreções, Excreções e Desatinos

Antologia Pessoal #6


Encontrar um poema de um verso
uma palavra
um motivo de silêncio

um clarão de esperança
ou uma ideia bem negra

pegar e deitar fora
assobiar
seguir viagem


Rui Caeiro em Sobre a Nossa Morte, Bem Muito Obrigado

Antologia Pessoal #4


"nem no acaso a culpa falha"



Antologia Pessoal #3

"eu disse «me lave a cabeça, eu tenho pressa disso», e então, me tirando do foco da ducha, suas mãos logo penetraram pelos meus cabelos, friccionando com firmeza os dedos, riscando meu couro com as unhas, me raspando a nuca dum jeito que me deixava maluco na medula, mas eu não dizia nada e só ficava sentindo a espuma crescendo fofa lá no alto até que desabasse com espalhafato pela cara, me alfinetando os olhos na descida, me fazendo esfregá-los doidamente com o nó dos dedos, ainda que eu soubesse que eles, ardendo, anunciavam francamente o meu asseio, e não demorou ela me puxou de nova sob a ducha, e seus dedos começaram a tramar a coisa mais gostosa do mundo nos meus cabelos co'a chuva quente que caía em cima, e era então um plaft plaft de espuma grossa e atropelada, se espatifando na cerâmica co'a água que corria ruidosa para o ralo, e ela ria e ria, e eu ali, todo quieto e largado aos seus cuidados, eu sequer mexia um dedo pra que ela cumprisse sozinha esse trabalho, e eu já estava bem enxaguado quando ela, resvalando dos limites da tarefa, deslizou a boca molhada pela minha pele d'água, mas eu, tomando-lhe os freios, fiz de conta que nada perturbava o ritual»

Raduan Nassar em Um Copo de Cólera

Antologia Pessoal #2

Um poema tenrinho pode ser

Um poema tenrinho pode ser
quando tu morreres vou tirar a carta
ou
o mosteiro dos pulmões ataca uma barriga sem grades
e nasce uma quantidade razoável de imagens
indo da agulha de cintilo
aos dentes de um morcego beija-mão.

mas pode ser escrever chamar otários
sabrões
zarpos
garôlos
altos comissários
nas paredes para as ruas
das garagens-oficina nova era automóvel.

mas pode ser amor drógádo
síque
não presta.

mas pode ser tão difícil.
mas pode ser
liga à tua antiga madrinha-de-guerra
vai ter com ela saca-a ao marido
mexe com esta merda
pá.

Nuno Moura em poetas sem qualidades

Antologia Pessoal #1


Palavras em busca de meu pai, no endereço que calculo

O meu capital de vida já está gasto e estou a viver
só de crédito. Crédito que o destino me dá por
distracção, por piedade, por curiosidade

Julio Ramón Ribeyro
[tradução de Tiago Szabo]

mais dia, menos dia, José,
apareço por aí,
levado, à boleia, pela alazão da morte.

fiz lista de quase tudo
o que te dará consolo
- um pouco de água azeda,
o cheiro do mar, um rádio pequenino,
laranja de muito sumo e livros de Conrad.

guarda-me um lugar de alma
a dois palmos da tua mão,
por causa do gume da noite
ou do silvo de cada manhã.

e deixa dormir o meu silêncio
com a face pousada no teu ombro,
enquanto, baixinho, a tua voz
chama pela nome cada lágrima.

por aqui, o que se foi do medo
anda regressado.
coisas de adivinhar, como calculas,
emendas de verso em branco no soneto da utopia.

o nosso anjo-da-guarda
está dentro da nossa senhora, disseste-me.
e desenhaste uma asa no molhado da areia.
lembras-te?

boa noite, meu pai!

Emanuel Jorge Botelho em Resumo - a poesia em 2011

Um poema de Carlos de Oliveira


No outro dia dei-me conta que não conheço poemas felizes. Só dor, só dor. E este, meus amigos, é um dos poemas mais dolorosos que já se escreveram em língua portuguesa. E quem disser o contrário é tolo.

BOLOR

Os versos
que te digam
a pobreza que somos,
o bolor nas paredes
deste quarto deserto,
o orvalho da amargura
na flor
de cada sonho
e o leito desmanchado
o peito aberto
a que chamaste
amor.

Carlos de Oliveira

Um poema de Toni Montesinos Gilbert

PIOR SÓ QUE BEM ACOMPANHADO

O meu único desejo é ser um bom homem.

Conheço demasiados egoístas
e a verdade é que lhes tenho desprezo.
Guardam tudo para si mesmos.
Até se masturbam para não se entregarem
a corpos tão egoístas como eles.

Eu quero apenas ser uma boa pessoa,
dizer que sim a tudo sem me queixar;
viver sacrificado em bondade pura;
ser honesto e amar sem pausas;
entender os outros, ajudá-los...

Gostaria de me transformar num objecto
de carinho, de amizade, de ternura;
oferecer o meu espírito; fundir-me
com os outros, sem aviso prévio.
Se me masturbo, não é apenas por egoísmo.

É porque ninguém quer estar comigo.

Toni Montesinos Gilbert

Tradução de Manuel de Freitas retirada da Telhados de Vidro nº5

Um poema de António Osório

In Memoriam

Ao lado do corpo de meu Pai
chorava esta pobre carne.
E de repente chegou a tua
e minha felicidade:

A teu lado estou
sorrindo a chamar-te,
espero que regresses a casa,
ansiosamente corro para a porta.

E ao colo sinto o teu calor,
contigo passeio pela mão,
pergunto, pergunto e tu respondes
ocultando o fim da vida.

Ver-te dormir, alegria
igual à tua
quando de noite
tranquilo eu respirava.

Tenho três anos e tu, Pai, és jovem,
grande, senhor do mundo,
deus docemente temido
desde o início.

Assim te amo agora sem lágrimas.
Que deste modo teus netos
um dia recordem de mim,
na tua, minha e deles
pura ignorância da morte.

António Osório em Raiz Afectuosa

A minha relação com a poesia sempre foi mais emocional que racional. Leio poesia para encontrar, num golpe de sorte, um conjunto de versos que diga algo por mim ou que ilumine algo que está obscurecido. Sempre foi assim e assim continuará a ser.
Nessa busca encontrei este poema de António Osório que diz tudo o que eu queria dizer, em oração, a meu pai.

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